ensaio para uma opereta em dois actos
ao povo grego
criaturas:
mulher escarlate
vadios/mahatmas
20 crianças
guerreiro espartano
coro de gregos suicidados
ferré
7 mulheres de negro
vozes
ísis sem véu
I acto
(a plateia é o mar. no plano inferior do palco, uma praia habitada por vadios em harmoniosos pares e ímpares. no plano superior uma montanha. a luz define o ocaso. a mulher escarlate aparece frente a um sol poente enorme.)
mulher escarlate – mia-me um gato dentro da cabeça!
no dilúvio da madrugada, as ideias são de ferro e não abrem por temor ao vento. a raça de abel invade a sombra de zinco em que reúno os panos do sono.
é preciso amputar a esperança.
vozes ditirâmbicas entoam no ermo encefálico, é a luta entre mim e deus dentro do poço de lama! eis o espectro argiloso humanal!
é preciso a amputar o além, ferré!
(enrola-se ao tronco de forma fálica. um guerreiro espartano sai do mergulho oceânico num salto. observa a praia e num ápice entra num monte húmido de areia. dela vai extraindo vinte crianças, uma a uma, que posiciona numa grande roda no centro da praia. ali ficam batendo palmas cadenciadas de um jogo mudo e lento. os vadios vão saindo ao ritmo das palmas.)
coro de gregos suicidados – (em movimentos precisos, de tal forma simétricos que se perceba a unidade, penduram as cordas, para a forca. a coreografia é rigorosa e determinada. cada um em frente à sua corda. )
as minhas mãos mordem as estrelas da noite turturina. vem, vamos cortar o lótus branco.
tenho uma lua cheia na cervical que me glorifica no finito terrestre.
rejeito a servidão, assim me demito do crime! quero-me feliz.
(batem em paus semelhantes aos dos pauliteiros de miranda e fazem, um por um a sua proeza sirtaki.)
mulher escarlate – a carroça de alumínio não pára, leva retalhos confusos de corpos desalojados, ensurdece a noite e o mar, espanta os pássaros das árvores!
consigo leva a voz dos frutos, que se quedam mudos no gemido do olhar das garças reais.
parece o abandono enraivecido dos saltimbancos, alma de lata no estridente limbo, deixa a natureza espectral quando passa.
as velhas fogem para dentro das arcas, o vento é uma alcateia que uiva e varre de medo a infância das flores.
ferré – (atravessa a praia com um cartaz de cartão que segura com uma vara de madeira. o cartaz diz: a técnica do caviar não me lava a poesia. por vezes ladra.)
coro de suicidados gregos – a noite jamais será a mesma, nascem nebulosas dentro do ventre do novo mundo.
invoco a noite para o banho de astros do nosso corpo de cristal.
o sol aproxima-se para o renascimento. morram os medos na magnitude do ocaso, que o inverno nos defina os ramos, que se encherão de novos frutos pela fertilidade da luz.
a tortura, a humilhação pela sombra do silêncio rasga o veludo do sol.
cada ave grita o desespero perpendicular à asa.
( enforcam-se. aproxima-se o rufo de tambores e os gritos do protesto indignado.)
ferré – (volta a atravessar a praia com o mesmo cartaz: a técnica do caviar não me lava a poesia. por vezes ladra e torna a desaparecer.)
várias vozes – (só as suas máscaras se vêem, todas elas de expressões diferentes. sussurram enquanto pousam um coração em cima de uma grande pedra. aqui o efeito da luz negra começa a definir a ausência e a presença.)
pousa o coração entre a rocha e o sol, vês, nascem-lhe asas à superfície! pelo ramo deslizam as mãos do abandono que enxertam o entrecasco na aorta. parece um fruto maduro perdido no tempo. o sol reflecte a alvura que ergue o pé líquido ao desejo, rasga a fenda que divide a paixão das urzes num esquecimento aleatório. progresso cambaleante do eco atormentado que carregas.
(antes de desaparecerem, escrevem na areia sem que se perceba o movimento da escrita, arte ou muerte.)
(sete mulheres de negro entram numa dança. sugerem um bicho de sete cabeças. uma delas entra em transe.)
mulher de negro 7 – há uma mulher palimpsesto no cadafalso nocturno, violada pelo silêncio da orquestra de bambu, pendente no telhado suspenso da casa submersa!
(entram todas em transe para alcançar a visualização dessa mulher.)
mulher de negro 2 – O cérebro humano reage como um animal.
mulher de negro 3 – enrolam-se sobre si mesmos, cobrem-se com capas quitinosas, enterram-se na lama, param a respiração e o pulsar do coração. O ser humano faz o mesmo, encerra-se num sistema repetitivo de gestos, desejos, emoções, pensamentos e vegeta nesses estreitos limites…
mulher de negro 4 – proibem-se o mais pequeno rasgo de originalidade relegando para a escuridão os seus sonhos de Ser.
mulher de negro 5 – surdez psicológica, cegueira psicológica. imitam a certeza.
o poder do agora aumenta a atenção sensorial.
passado e futuro são as novas sedes da doença.
mulher de negro 6 – sht! ouvem-se mil palavras silenciosas.
fraldas. causas que se derramam. lastros depressivos. Sht!
mulher de negro 7 – é o mistério à luz total! misteriosa linguagem encantatória que vem do fundo dos tempos… o homem tropeça na sua própria roupa. (comtemplam os céus mas de repente ouvem-se grunhidos em aproximação.
mulher de negro 3 – escutem… são os lestrigões do poder, vamos! (fizeram uma breve dança e transformaram-se em arbustos.)
(no momento em que entram vários lestrigões, cujo apontamento é a gravata, o coro de gregos suicidados, vai ganhando formas árboreas ainda que de tronco humano enverguem no lugar do crânio, raízes. com o avançar da acção ganham frutos e surgem marionetas de aves com os mais diversos cantos. um dos lestrigões é o líder. não usam a fala. têem gestos grotescos à mistura de um ou outro movimento de burocrata. entram em escaramuça e acabam por se devorar uns aos outros. as mulheres de negro retomam o seu corpo em convulsões de riso. saem voando.)
II acto
criança – (dá a mão a outra das crianças, despertam e procuram instalar-se no centro da roda.) nun t’ambergonhes cula mie pobreza, aprossima-te. se nun tubires muita fame cunto-t’ua stória, quieres? Assi se tu te çpuseres a oubir, ye cumo se a bibissemos, pus las sues palabras son mágicas. Lieban-te para ua outra possibelidade deste mundo, adonde todos ne ls spressamos na mesma lhéngua, inda que cun códigos defrentes, pus ls cochino num pian nin las abes roncam! que çparate! (rebola de riso e logo se compõe, com movimentos ritualísticos.)
outra criança – deixa-me arrumar ls planetas ne l bolso. (e surge uma carreirinha de berlindes em forma de planeta, ou vice-versa, que ele mete ao bolso como se fosse uma rotina metódica e apressada.)anda, ampeça, quedei ansioso, pus yá stou hai milhones d’anhos a la spera! (rebola de riso e fica numa posição felina e muito atento.)
criança – na mie minte han-de star siempre bibos ls nacidos de l suor, segunda raíç de la Ronda. bebian nun lugar chamado heiperbóreo !fúrun l’auga biba d’adonde brotou la cuncéncia. Todos nacemos desse mesmo saco amniótico, dessa inocéncia. Depuis ganhamos esta forma mortal i bertebrada. La matéria ye un momiento probísório, sabies?
outra criança – saber, sabor… (ri.) sabe-me bien mas nun sei dezir-te. cuntinua…
criança – guiában-se puls anstintos sprituales… a partir de cierto die, ampeçórun a quedar mais densos até qu’un puso un uobo! Ampeçórun a nacer de si mesmos mas d’outra forma! i fúrun estes heirmafroditas, Lemurianos, ls purmeiros a tener sexo! (ri.) fúrun eilhes que dórun ourige als gigantones de ls Atlantes! ls fundadores desta raça cansada qu’anda pula Tierra agora…
ás bezes, al ber las medusas, lembro-me de que puoden ser heiperbóreos amigos mas eilhas puoden matar-mos, anton quedo-m’ a pensar…
outra criança – cuntinua, nun te pongas a pensar agora!
criança – (faz um sinal às mulheres de negro que aparecem todas com as mãos em fogo. as outras crianças assim como o guerreiro espartano vêm juntar-se. a mulher escarlate, serpenteia todos os gregos arbóreos até chegar a uma fraga próxima onde se deita. a criança começa a cantar orquestrando um jogo de palmas.)
a mente mata o real
tu matas o assassino
que os teus olhos se tornem cegos à ilusão
que o som interior mate o ruído exterior
e os teus sonhos sejam pirilampos de oiro
volantes da tua criação
quando a tua alma se unir ao Grande Silêncio
poderá recordar-se ao nascer do Sol
e então cantar dentro da carne
o regresso à Ilha Sagrada
os que se lamentam dentro do castelo da ilusão
perecem na terra
como tartarugas tímidas dentro da máscara
(orquestram o mesmo jogo de palmas.)
a mente mata o real
tu matas o assassino
que os teus olhos se tornem cegos à ilusão
que o som interior mate o ruído exterior
e os teus sonhos sejam pirilampos de oiro
volantes da tua criação
(surgem os vadios da praia banhados de luz roxa.)
outra criança – os Mahatmas!
(os vadios, aliás, os mahatmas, fazem uma ténue e ligeira vénia ao som emitido pela criança.)
coro dos mahatmas – Om (som que se prolonga.)
criança – só ao chegares ao fim da senda ouvirás o silêncio
sobre as asas do Grande Pássaro!
(as mulheres de negro repetem em coro. há um silêncio. do plano superior surge Ísis sentada num trono em cânticos guturais. deixa cair um grande véu sobre as criaturas. tudo se transforma num grande leito aquático.)
fim
por fátima vale
Fátima Vale… Belo- belo texto— feérico… Surrealista— e, para quê tantas comparações se somos todos uma metáfora… Estou a imaginar este texto teatralizado interpretado pelos Spilabados e encenado pela Fátima? Fazes-me lembrar a Natália Correia que eu conheci em Matosinhos há uns anos num horrível dia de chuva.- Eu disse “Viva a Poesia- e ela disse- já acabou. e, eu disse- Não acabou
nada- para a frente…
evoé Manuel! lembraste a natália correia no preciso dia do seu nascimento! um ser de tamanha sabedoria… invoca-la é despertar um legado. os spabilados teatro hedonista estão deveras limitados na produção de artes cénicas. vou procurar meios de realizar esta peça, seja em leitura encenada, seja numa gravação ousada, para o ouvido.
espero voltar a encontrar-te por aqui ou por acolá. abraço patafísico!
Andava por aqui tentando descobrir algo que me desse um clic mental… e foi assim tambem que me apercebi da possibilidade de comentar 🙂
Lembro-me bem dessa tua cena com a Natalia amigo Manuel Barbosa. Tambem gostava de ver esta peça, quando isso tiver para acontecer faz o favor de nos avisar amiga Fatima.
viva, grande leunam! vou afiar os bigodes com pedra pomes, para encontrar os recursos humanos necessários. coisa tribal, serás, serão mais que bem vindos!
abraçíssimo, íssimo, íssimo.